sexta-feira, 3 de maio de 2013

Clarice Lispector

(www.citador.pt):

Eu Sou Nostálgica DemaisDe súbito a estranheza. Estranho-me como se uma câmera de cinema estivesse filmando meus passos e parasse de súbito, deixando-me imóvel no meio de um gesto: presa em flagrante. Eu? Eu sou aquela que sou eu? Mas isto é um doido faltar de sentido! Parte de mim é mecânica e automática — é neurovegetativa, é o equilíbrio entre não querer e o querer, do não poder e de poder, tudo isso deslizando em plena rotina do mecanicismo. A câmera fotográfica singularizou o instante. E eis que automaticamente saí de mim para me captar tonta de meu enigma, diante de mim, que é insólito e estarrecedor por ser extremamente verdadeiro, profundamente vida nua amalgamada na minha identidade. E esse encontro da vida com a minha identidade forma um minúsculo diamante inquebrável e radioso indivisível, um único átomo e eu toda sinto o corpo dormente como quando se fica muito tempo na mesma posição e a perna de repente fica «esquecida». 
Eu sou nostálgica demais, pareço ter perdido uma coisa não se sabe onde e quando. 

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida' 

Um comentário:

  1. Querida Maria Inês
    Que belo texto escolheu para publicar.Revela muita sensibilidade.Parabéns. Nós somos assim mesmo.Uma parte de nós é mecânica,nem damos pelo que estamos a fazer. A outra, é a consciente e, aí ,já o caso muda de figura.
    Bom fim de semana
    Beijinhos da
    Beatriz

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